A trajetória da indústria de veículos Gurgel

Por Sérgio Prata (pratasergio@hotmail.com)

Introdução

Em 1º de setembro de 1969, o Brasil passava a ter, finalmente, uma industria automobilista genuinamente nacional, com capital, projetos e proprietários brasileiros. Criada na cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo, surgia uma importante indústria nacional de automóveis que durante 25 anos produziu cerca de 40.000 veículos do tipo: utilitários, carros urbanos e até elétricos. Seu idealizador foi o engenheiro mecânico e eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que sempre sonhou produzir um carro genuinamente brasileiro.

A formação e os primeiros projetos

Gurgel formou-se na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo em 1949, onde na formatura apresentou o projeto de um automóvel popular, o Tião. O seu professor comentou: “…Carro não se fabrica, se compra, é tecnologia de multinacionais”. Gurgel não concordou. Formou-se e foi estagiar na General Motors. Retornou ao Brasil em 1953 e foi trabalhar na Ford do Brasil.

Em 1958, criou a Moplast Moldagem de Plástico que fabricava luminosos para concessionárias Volkswagen e logo depois criou uma divisão da empresa, a Mokart, que passou a produzir karts, incluindo o motor. O karts de Gurgel venceram diversas corridas nas mãos dos irmãos Fitipaldi, José Carlos Pace, que na época iniciavam sua carreiras. Dos karts passou para os minicarros para crianças, que viraram moda em todo a Brasil.

Surge a Indústria Gurgel

Em 1969, Gurgel vendeu a concessionária Volks de sua propriedade e criou a Gurgel Indústria e Comércio de Veículos Ltda., na Av. do Cursino, na cidade de São Paulo. Aproveitando-se da amizade com o presidente da Volkswagem do Brasil, conseguiu chassis e motores e começou a produzir o Gurgel 1200, nas versões Ipanema e Enseada (carros esporte para praia e campo), Augusta (luxuosa, co painel, tapetes, calotas e volantes especiais) e Xavante (utilitário com pneus 6.40-15). O Gurgel 1200 era um veículo de fibra que utilizava chassi, motor 1200 cc e suspensão Volkswagen. Mas Gurgel queria mais. Criou o plasteel, uma resistente estrutura formada por camadas de plástico reforçado por fibra de vidro que envolvia uma armação de tubos de aço de sessão quadrada, que formavam um novo chassi, tipo monobloco, mais resistente, mais alto e que permitia encarar terrenos que os carros normais não tentavam passar. Daí o conceito do “qualquer terreno” e a opção de ocupar um nicho de terreno ainda não explorado.

Nessa época também lançou o Bugato, como o nome indica, um bugre que era vendido em kit, para ser montado em casa pelo comprador. O maior sucesso do modelo foi ter aparecido no filme “Roberto Carlos a 300 kms por hora”, em 1971.

Gurgel sempre batizou seus carros com nomes brasileiros, particularmente, das nossas tribos de índios.

Assim, Gurgel criou, em 1973, o Xavante, também conhecido como X-10, com motor 1600 cc e 60 cv, segundo o prospecto da fábrica, com tração traseira e que foi seu principal produto durante toda a evolução e existência da fábrica. Era um jipe que gostava de estradas ruins e não se importava com a meteorologia. Sobre o capô dianteiro era notável a presença do estepe. Sua distância do solo era grande, o pára-brisa rebatia para melhor sentir-se o vento e a capota era de lona. Um par de pás afixadas nas portas chamava a atenção e logo anunciava o propósito do veículo.

O chassis era uma união de plástico e aço (projeto patenteado pela Gurgel desde o início de sua aplicação, denominado Plasteel), que aliava alta resistência a torção e difícil deformação. A carroceria era em plástico reforçado com fibra-de-vidro (FRP). Conta-se que, na fábrica, existia um taco de beisebol para Gurgel oferecia aos visitantes para que batessem forte sobre a carroceria para testar a resistência. Não amassava, mas logicamente o teste pouco comum era feito antes de o carro receber pintura.

Pelo emprego destes materiais a corrosão estava completamente banida. A carroceria e o chassi formavam um só bloco. As rodas, as mesmas da Kombi, de aro 15, eram equipadas com pneus de uso misto. A suspensão, como no Fusca, era independente nas quatro rodas, em um conjunto muito robusto , mas na traseira a mola era helicoidal, em vez da tradicional barra de torção. Para subir ou descer morros não havia grande dificuldade. A carroceria tinha ângulo de entrada de 63 graus e 41 graus de saída.

O Xavante inovou com o Selectraction, um sistema com duas alavancas, ao lado do freio de estacionamento, para frear seletivamente cada uma das rodas traseiras. Era muito útil em atoleiros, pois freando uma das rodas que estivesse girando em falso – característica de todo diferencial – a força era transmitida à outra, facilitando a saída do barro. Com este sistema o carro ficava mais leve e econômico do que se tivesse tração nas quatro rodas e a eficiência era quase tão boa quanto.

O Xavante X-10 logo agradou ao público e, particularmente ao Exército brasileiro, que fez encomenda para uma versão militar especialmente produzida para este fim. Na primeira reestilização, em 1975, as linhas da carroceria ficaram mais retas. O estepe agora ficava sob o capô, mas o ressalto neste anunciava sua presença. Sobre os pára-lamas dianteiros ficavam as lanternas de direção, idênticas às do Fusca.

Em 1976, surgiu o X-12, também com motor 1600 cilindradas, gasolina (53 CV) ou álcool (56 CV), carburador simples ou duplo, e relação de diferencial mais curta do Fusca 1300 (1.4,375:1 no lugar de 1.4,125:1).

Além da capota de lona, o X12 agora apresentava um teto rígido em fibra. Atrás das portas havia uma entrada de ar para ventilação do motor. A velocidade final não chegava a empolgar: fazia no máximo 108 km/h e de 0 a 100 km/h levava penosos 38 s. Mas seu objetivo era mostrar serviço e desempenho com relativo conforto em caminhos difíceis, pouco apropriados a carros de passeio.

Sua estabilidade em ruas de asfalto ou paralelepípedo era sofrível, e era melhor não arriscar nas curvas. O jipe gostava mesmo de lama, terra, água, que eram seu hábitat natural. Era fácil de estacionar, de dirigir e de domar. Por causa de todo o conjunto muito robusto, era um veículo barulhento para o dia-a-dia.

Na traseira, sobre a pequena tampa do motor, havia um tanque de combustível sobressalente de 20 litros ou, como alguns gostavam de chamar, camburão. Era um dispositivo útil e bem-vindo para as aventuras fora-de-estrada. Na frente, o pequeno porta-malas abrigava o estepe e o tanque de combustível de 36 litros, que mais tarde mudaria para 40 litros. Para as malas havia quase nenhum espaço, e o painel, muito simples, continha o estritamente necessário.

O X-12 era fabricado nas versões luxo e standart, nas opções com teto rígido, o X12 TR; o jipe com capota de lona (TL, a versão mais barata do X12), o Caribe (destinado a exportação), o X12 RM (Teto rígido manutenção, meia capota) e a versão X12 M, militar. Este ultimo, exclusivo para as Forças Armadas, já vinha na cor-padrão do Exército, com emblemas nas portas e acessórios específicos.

Em 1979, toda a linha de produtos Gurgel foi exposta no Salão do Automóvel de Genebra, na Suíça.

A energia elétrica como combustível limpo

Em 1974 a Gurgel apresentava um pioneiro projeto de carro elétrico. O protótipo Itaipu, alusão à usina hidrelétrica, era bastante interessante: ótima área envidraçada, quatro faróis quadrados e um limpador sobre o enorme pára-brisa, que tinha a mesma inclinação do capô traseiro. Visto de lado, era um trapézio sobre rodas. Era um minicarro de uso exclusivamente urbano para duas pessoas, fácil de dirigir e manobrar, que usava baterias recarregáveis em qualquer tomada de luz, como um eletrodoméstico.

Ele teria tudo para dar certo se não fosse os problemas a com durabilidade, capacidade e peso das baterias, o que até hoje ainda é um desafio.

Nessa vertente de preservação do meio ambiente e com maior experiência na área de tração elétrica, no início dos anos 80, Gurgel aproveitou o nome, mas mudou o conceito, criando uma carroceria moderna, de uso comercial, a qual chamou de Itaipu E-400, nos formatos furgão, picape e cabine dupla (CD) com 3 portas para transporte de passageiros. Tinha autonomia de 80 km e velocidade máxima de 70 km/h. Não foi comercializado ao público, mas foi direcionado para empresas para ser testado. Foi o primeiro carro elétrico produzido em escala comercial na América do Sul. Após os testes foi aperfeiçoado e comercializado com o nome de Itaipu E-500, e também ganhou uma versão a combustível, com motor a ar, o G-800.

O G-800 pesava 1.060 kg e podia carregar mais 1.100kg, sendo um utilitário valente e robusto.

No Itaipu E-500, o painel era equipado com velocímetro, voltímetro, amperímetro e uma luz-piloto que indicava quando a carga estava por acabar. O elevado peso das baterias, cada uma com 80 kg, era o ponto negativo, pois reduzia o desempenho do furgão. O motor elétrico era um Villares de 8 kW (11 cv) e girava a 3.000 rpm.

Cresce a família “X”

Complementando a linha X, derivada do nome Xavante, a Gurgel lançou, em 1979, o X-15, com várias opções: um monovolume TR de quatro portas, a picape G-15, cabine-dupla CD, a versão cabine-simples (CS), o cabine-simples com capota de lona e a versão bombeiro, equipadas com luzes giratórias sobre o teto.

Era um furgão com estilo bastante original. Parecia um veículo militar de assalto, um pequeno carro-forte destinado as frotas policiais. Foi lançado nas versões: picape de cabine simples e dupla. O furgão podia transportar até sete pessoas, ou duas e mais 500 kg de carga. Como os demais, usava a mecânica VW “a ar”. Todos os vidros da carroceria, inclusive o pára-brisa, eram planos, sem nenhuma curvatura. Na frente muito inclinada, o pára-brisa era dividido em dois vidros, sendo que um deles, em frente ao motorista, ocupava 3/4 de toda a área frontal na versão militar (na civil os vidros tinham a mesma largura). Nesta versão também havia o guincho, faróis protegidos por grade, pequenas pás afixadas nas portas e capota de lona. Seu ângulo de entrada e saída para enfrentar rampas acentuadas era tão bom quanto o do X12. Tinha um ar muito robusto, com 3,72 m de comprimento, 1,90 m de largura e a altura total de 1,88 m, era um tijolo sobre rodas. Os faróis eram embutidos no largo e ameaçador pára-choque preto.

A diversidade sobre rodas

Apesar de ser um crítico do Proálcool, pois discordava da utilização das terras, que poderiam plantar alimentos para a população, para plantar cana, o engenheiro João Gurgel, em 1976, produziu um protótipo a álcool e o cedeu ao Governo para a campanha de popularização do combustível vegetal. Em 1980, a fábrica Gurgel produzia cerca de 10 modelos, todos com motores a gasolina ou álcool.

Em 1981, como exigência de critérios de segurança, os freios dianteiros no X12 passaram a ser a disco e a suspensão dianteira ficou mais robusta. A partir daí, a cada ano surgiam novos detalhes de acabamento, como o quebra vento, nova grade frontal, vidros com acionamento vertical, o deixaram mais “luxuoso”. No X15, era lançada a versão Van-Guard. Atrás dos bancos dianteiros havia dois colchões com revestimento plástico estampado, que combinavam com pequenos armários embutidos. Cortinas nas janelas e até um ventilador completavam o ambiente descontraído. O carro tinha um visual hippie. Na parte externa, faixas triplas e grossas nas laterais e o estepe fixado na traseira com cobertura nos mesmos tons da carroceria. Tinha só duas portas e, nas laterais, um vidro basculante retangular grande. Ideal para quem curtia acampar e programas ecológicos. Nesta versão ele ficou menos sisudo.

Também foi lançado o G15 L, picape cabine-simples mais longa (3,92 m) derivado do X15, que podia transportar até uma tonelada de carga. O tanque de combustível era de 70 litros e podia receber outro de mesma capacidade para aumentar a autonomia (vigorava então o absurdo e ineficiente regime de postos fechados nos fins de semana). Além da versão padrão, havia a cabine-dupla de duas ou quatro portas e a furgão.

G15 L

Em meados da década de 70, a Gurgel crescia e a fábrica em Rio Claro, com área de 360 mil m2, dos quais 13 mil eram construídos, contava com 272 empregados entre técnicos e engenheiros, que dispunham de assistência médica e transporte. Nos final dos anos 80, a Gurgel chegaria a 1.000 funcionários.

Em 1977 e 1978, a Gurgel ocupou o primeiro lugar na exportação na categoria “veículos especiais’ e o segundo em “produção e faturamento”. Cerca 25% da produção seguia para fora do Brasil. Eram fabricados 10 carros por dia, sendo o X12 o principal produto da linha de montagem. A unidade de negócios era o Gurgel Trade Center, numa importante avenida da capital paulista. Havia um escritório executivo e um grande salão de exposição, além de um centro de apoio técnico aos revendedores.

Uma experiência original

No final de 1981 era desenvolvido o modelo Xef. Com duas portas e três volumes bem definidos e apenas três bancos dianteiros.

Xef

Em 1982 o X12 normal seguia seu caminho na produção e nas estradas de terra, lama e areia do Brasil. Com a mesma carroceria mais reta da versão de teto rígido (TR), continuava com o pára-brisa dobrável e a capota de lona presa com botões de pressão. Os retrovisores externos e internos eram fixados na estrutura do pára-brisa. Tudo muito prático e simples. A carroceria agora recebia uma faixa branca que contornava a porta e o pára-lama. As portas eram de plástico reforçado. O pequeno e simpático jipe recebia opcionalmente rodas esportivas, brancas e bonitas, de 14 pol (pneus 7,00 x 14) no lugar das originais de 15 pol. Na versão Caribe a capota e os bancos eram listrados com cores vivas e alegres, que combinavam com a carroceria no mesmo tom, e as rodas brancas eram de série.

Em 1983 a versão de teto rígido do X12 recebia uma clarabóia no teto, bastante útil para refrigerar a cabine. Um defeito na versão TR que jamais foi sanado era que sua porta era presa ao pára-lama dianteiro por dobradiças. Qualquer um armado com uma chave Phillips podia desmontar a porta, entrar no jipe para roubar objetos ou mesmo dar uma voltinha com ele.

No modelo 1985 as novidades externas eram nova grade, pára-choques e lanternas traseiras. Por dentro o painel e o volante também eram mais modernos. A versão de luxo contava com bancos com encosto alto alem da clarabóia. Na parte mecânica vinham como novidade ignição eletrônica, nova suspensão traseira e diferencial com outra relação, que o deixou mais veloz em rodovias, econômico e silencioso. No mesmo ano a VW introduziu no Fusca a relação 3,875:1 como parte do pacote que objetivava redução de 5% no consumo médio de combustível. Como a Gurgel dependia do fornecimento da VW, a modificação foi estendida ao X12.

Nasce o Carajás

Em 1984, surgia a Gurgel Tec – Tecnologia de Veículos S.A. para pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias. No mesmo ano, foi lançado um novo veículo também com nome indígena, o jipe Carajás, com motor dianteiro e cambio e tração traseira. Para transmitir a força do motor para as rodas traseiras, era usado o Tork Tube System, um tubo de aço, com uma árvore de transmissão de aço em seu interior, que interligava o motor dianteiro ao conjunto traseiro de embreagem, câmbio, diferencial e semi-árvores. Uma ótima solução, encontrada pelo fato de o Carajás usar quase todo o conjunto mecânico do Santana, que é de tração dianteira. A caixa de mudanças, entretanto, era de Volkswagen “a ar”.

O sistema era novidade no país, baseado num transeixo, ou transmissão e diferencial juntos, instalados na traseira de um veículo de motor dianteiro. Mas mostrou-se frágil, pois era muita potência do motor 1,8-litro transmitida para o conjunto traseiro previsto para motores 1,6 refrigerado a ar. A embreagem situava-se na dianteira do veiculo, junto ao volante motor, sendo um defeito relevante, pois a troca de marcha deveria ser feita com um tempo maior em relação a outros veículos, devido a inércia do conjunto TTS com o eixo primário da caixa de transmissão.

As versões eram TL (teto de lona), TR (teto rígido) e MM (militar). Versões especiais ambulância e furgão também existiram. Um detalhe que logo chamava a atenção era o grande estepe sobre o alto capô dianteiro, solução inspirada nos Land Rovers que prejudicava a visibilidade frontal. De frente era notável a grade preta com quatro faróis retangulares, iguais aos do Passat. Opcionalmente podia vir com o guincho.

Carajás

O Carajás era um jipão na melhor definição. Chamava a atenção por onde passasse. Tinha duas portas laterais e uma traseira com abertura meio a meio. Sobre o teto, uma clarabóia para ventilar a cabine. Dentro havia um forro duplo do teto, com cinco difusores de ar, dois para os passageiros da frente e três para os de trás – e funcionava bem. Sobre o teto, como opcional, era oferecido um enorme bagageiro.

A carroceria, em plástico reforçado com fibra-de-vidro, tinha sempre cor preto-fosco no teto. O detalhe podia mascarar sua altura, mas concorria para aquecer o interior. Os bancos dianteiros, com encosto para cabeça, corriam sobre trilhos e facilitavam a entrada de passageiros atrás. A posição de dirigir era boa só para as pessoas mais altas.

O chassi Plasteel também estava presente, junto com o sistema Selectraction. O motor dianteiro de 1,8 litro e 85 cv, refrigerado a água, era o mesmo do Santana e podia ser a álcool ou a gasolina. Depois veio a versão com motor diesel de 1,6 litro e 50 cv, também refrigerado a água e usado na Kombi. Um detalhe mecânico interessante era o TTS.

A suspensão do Carajás era independente nas quatro rodas. Na frente era utilizado o conjunto de eixo dianteiro da Kombi, enquanto na traseira a disposição era de braço semiarrastado com mola helicoidal. Apesar das dimensões e do peso do carro, era confortável, ótimo de curva, de rodar macio e tranqüilo no asfalto ou em terrenos difíceis. Sua capacidade de carga era de 750 kg.

Em 1988 eram apresentadas as versões VIP e LE do Carajás. As mudanças eram na porta traseira, agora numa peça só; nas maçanetas, capô e grade frontal, que passava a fazer parte da carroceria. Na VIP as rodas eram cromadas, os vidros fumê, a pintura metálica acrílica e os bancos tinham melhor revestimento. Mas o Carajás era caro para o público e não alcançou o sucesso esperado.

Em 1986, surgiu o Tocantins, caracterizada por uma reforma estética, e que conviveu por um tempo com o modelo X-12,. O Tocantins passou a apresentar linhas mais modernas, mas ainda lembrando bem suas origens. Ele deixou de ser fabricado regularmente no início dos anos 90, mas um pool de concessionárias Gurgel montou alguns modelos até meados da década de 90.

X12 Tocantins

Devido às exportações para o Caribe, o X12 atrapalhou e encerrou a produção do VW 181, utilitário de conceito similar feito pela filial mexicana da Volkswagen. As relações com a fábrica alemã, que eram ótimas, foram abaladas, mas o próprio Gurgel não queria ficar atrelado à VW a vida toda. Ele queria voar mais alto, e quase conseguiu.

Além dos utilitários, Gurgel sonhava com um minicarro econômico, barato e 100% brasileiro para os centros urbanos. Em 7 de setembro de 1987, segundo ele, dia da independência tecnológica brasileira, foi apresentado o projeto Cena, “Carro Econômico Nacional”, ou Gurgel 280. Este era o primeiro minicarro da empresa, projetado para ser o mais barato do país. Os motores, de configuração única no mundo, eram como os VW 1.300 e 1.600 cortados ao meio: dois cilindros horizontais opostos, 650 ou 800 cm3 , mas refrigerados a água. A potência seria de 26 ou 32 cv conforme a versão.

O carro seria lançado em opções 280 S, de sedã, e 280 M, de múltiplo, com capota removível – restariam, porém, as molduras das portas e vidros laterais, bem como uma barra estrutural do teto. Solução interessante era o porta-luvas, uma maleta executiva que podia ser removida. Com a evolução do projeto, o motor menor foi abandonado e a cilindrada fixada em 0,8 litro, originando o nome BR-800. O motor fundido em liga de alumínio-silício era batizado como Enertron e projetado pela própria empresa. Este motor foi inteiramente pesquisado e desenvolvido pela Gurgel no Brasil, e ainda contou com elogios de marcas consagradas, como a Porshe, Volvo, Citroën e vários especialistas em motores.

BR-800

O avanço de ignição era controlado por um microprocessador (garantido durante cinco anos) e não havia necessidade de distribuidor, pois o disparo era simultâneo nos dois cilindros, idéia aproveitada dos motores Citroën de disposição semelhante. O sistema de ignição era outra patente da Gurgel.

Motor Enertron

O pequeno motor reunia alguns aspectos notáveis. Por exemplo, podia ser levado a praticamente 6.000 rpm sem flutuação de válvula (fechamento incompleto devido à velocidade excessiva), o que o motor VW não tolerava, mal passando de 5.000 rpm. A refrigeração a água com ventilador elétrico funcionava muito bem. A velocidade máxima era de 117 km/h.

Gurgel, sempre querendo incorporar avanços, idealizou o motor sem correia trapezoidal para acionar acessórios, como o alternador, visando facilidade de manutenção, preocupação nada desprezível. Para isso, o alternador era acoplado diretamente ao comando de válvulas. Só que devido à rotação do comando ser metade da do motor, o alternador não desenvolvia potência suficiente em várias condições de uso, como todos os acessórios ligados ao dirigir moderadamente. O resultado era a descarga da bateria, uma inconveniência e tanto para o motorista. Assim, a fábrica não demorou para voltar atrás e modificar a montagem do alternador, que passou a receber movimento do motor pela maneira tradicional de polias e correia trapezoidal, e com redução apropriada (cerca de 2:1), resolvendo definitivamente o problema.

O BR podia transportar quatro passageiros com relativo conforto e 200 kg de carga. Pesava 650 kg, tinha duas portas e vidros corrediços, o que prejudicava a ventilação da cabine. Para guardar objetos no pequeno porta-malas, abria-se o vidro traseiro basculante, que servia de porta; o acesso não era dos mais cômodos. Ainda assim era melhor do que a solução original de vidro traseiro fixo, em que era preciso acessar aquele compartimento por dentro do carro, como no Fusca. Por outro lado, o estepe tinha acesso muito pratico por fora, em uma tampa traseira.

O Governo Federal, num louvável gesto de apoio à indústria nacional, concedeu ao carrinho o direito de pagar apenas 5% de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), enquanto os demais carros pagavam 25% ou mais dependendo da cilindrada. O objetivo de projetar um carro com o preço final de US$ 3000 não se concretizou, o preço acabou ficando por volta de US$ 7000, mas graças ao incentivo fiscal, ainda era cerca de 30% mais barato que os compactos de outras montadoras, a exemplo da época poderíamos citar o FIAT Uno.

Lançado em 1988, foi produzido até 1991. De início, a única forma de compra era a aquisição de ações da Gurgel Motores S/A, que teve a adesão de 8.000 pessoas. Sob uma campanha convidativa – “Se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?” -, foram vendidos 10.000 lotes de ações. Cada comprador pagou os US$ 7.000 pelo carro e cerca de US$ 1.500 pelas ações, o que se constituiu um bom negócio para muitos – no final de 1989 havia ágio de 100% pelas mais de 1.000 unidades já produzidas.

Em 1990, quando o BR-800 começava a ser vendido sem o pacote compulsório de ações, quando parecia estar surgindo uma nova potência (tupiniquim) no mercado automobilístico, o Governo isenta todos os carros com motor menor que 1000cm3 do IPI (numa espécie de traição à Gurgel). Assim a Fiat, seguida por outras montadoras, lançou quase que instantaneamente o Uno Mille com o mesmo preço do BR-800, mas que oferecia mais espaço e desempenho.

Tentando reagir a Gurgel lança em 1992 uma evolução do BR-800, o Supermini. Tinha um estilo muito próprio e moderno. Media 3,19 m de comprimento, sendo ainda o menor carro fabricado aqui. Estacionar era com ele mesmo, devido à pequena distância entre eixos (1,90 m) e uma direção leve. Tinha faróis quadrados, grade na mesma cor do carro, duas portas, dois volumes e boa área envidraçada. As linhas eram mais equilibradas que em seu antecessor.

Supermini

A carroceria era em plástico FRP e tinha garantia de 100 mil quilômetros, alta resistência a impactos e, como tradição da fábrica, estava livre da corrosão. Era montada sobre um chassi de aço muito bem projetado e seguro, bem resistente à torção. Os pára-choques dianteiro e traseiro, assim como a lateral inferior, vinham na cor prata.

chassi

O Supermíni usava o mesmo motor bicilíndrico, só que um pouco mais potente (3cv a mais). Todo o conjunto motriz tinha garantia de fábrica de 30 mil quilômetros. Os vidros dianteiros não eram mais corrediços nem tinham quebra-ventos, e agora havia uma verdadeira tampa de porta-malas. O banco traseiro bipartido possibilitava o aumento da capacidade do porta-malas. O consumo era baixo. Fazia 14 km/l na cidade e, a uma velocidade constante de 80 km/h, até 19 km/l em quarta marcha.

Como destaques tinha motor com suspensão pendular, com coxim em posição elevada. A suspensão dianteira já não era mais a Springshock do BR-800 – mola e amortecedor combinados, fabricados na própria Gurgel, que apresentavam enorme deficiência -, mas uma disposição convencional de braços transversais superpostos com mola helicoidal. A traseira era por segmento de feixe de molas longitudinal. A versão SL trazia como equipamentos de série conta-giros, antena de teto, faróis com lâmpadas halógenas e rádio/toca-fitas. Até junho de 1992, 1.500 unidades do Supermini haviam sido vendidas.

Pouco depois a Gurgel mostrava o Motomachine, veículo bastante interessante. Acomodava dois passageiros e usava, entre outras peças, o mesmo motor do Supermíni. Tinha para-brisa rebatível, e tanto o teto de plástico quanto as portas em acrílico transparente eram removíveis. Era um carro de uso restrito, feito para a curtição ou o transporte básico nos grandes centros. Poucas unidades circulam e são dignas de apreciação e curiosidade.

O próximo projeto, batizado de Delta, seria um novo carro popular que usaria o mesmo motor de 800cm3 e custaria entre US$ 4000 e US$ 6000, mas não chegou a ser fabricado. Gurgel chegou a adquirir todas as máquinas-ferramenta que acabaram não sendo usadas.

Atolada em dívidas e enfraquecida no mercado pela concorrência das multinacionais, a Gurgel pediu concordata em junho de 1993. Houve uma última tentativa de salvar a fábrica em 1994, quando a Gurgel pediu ao governo federal um financiamento de US$ 20 milhões, mas este o foi negado, e a fábrica acabou fechando as portas no final do ano.

O Inquérito Administrativo da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), responsável pela auditoria das empresas com ações na bolsa (como a Gurgel na época da falência), de número 36/1998 nos fornece algumas informações interessantes sobre o fechamento da Gurgel: “Eventos tais como descumprimento, pelos Estados de São Paulo e Ceará, de acordos celebrados; greves de funcionários; descapitalização das empresas, pela impossibilidade de cumprir metas de produção; piquetes violentos; corte de energia elétrica; corte de crédito por parte de instituições bancárias; bem como falta de ação e de cumprimento de atos legais, por parte do Sr. João Augusto Gurgel, teriam dificultado e até mesmo impedido a gestão dos negócios das empresas.
Refere que uma greve dos fiscais da Receita Federal, em meados de julho de 1992, com duração de mais de 30 dias, teria retido vários caminhões na fronteira, sendo que a empresa importava as caixas de câmbio utilizadas em seus veículos, e que, por conta de tal fato, teria sofrido paralisação da linha de produção por mais de dois meses. Impedida de faturar, teria descumprido compromissos assumidos junto a Bancos, que teriam recusado novos créditos, provocando atrasos no pagamento de salários e, conseqüentemente, mais greves”.

Sem dúvida o grande engenheiro João Gurgel deixou seu legado na indústria nacional. Foi um homem à frente do seu tempo, corajoso e patriota que infelizmente não conseguiu suportar sozinho a concorrência das grandes multinacionais.

Colaborações de: Sérgio Prata, Maximillian Luppe.

Fontes: Livro Gurgel, um brasileiro de fibra, de Lelis Caldeira, Site Gurgel 800Prospectos da fábrica Gurgel, comunidade “Gurgel Motores” no Facebook.